A União Estável de
dois anos estabelecida pela Medida Provisória nº 664 de 2014
A Medida Provisória nº 664 de 2014 trouxe a necessidade de convivência
de dois anos para a aquisição do direito à dependência econômica no caso de
morte do companheiro. Tal preceito constante da referida medida traz inúmeros
problemas jurídicos.
1 Breves considerações sobre a união estável
A união estável não se confunde com um namoro moderno, uma relação
passageira e fugaz. A união estável traz a convivência do homem e da mulher sob
o mesmo teto, ou não, como se esposa e marido fossem.
Não possuindo nenhuma relação com o concubinato, puro ou impuro, ou
qualquer tipo de relação adulterina, a união estável é reconhecida como
entidade familiar, nos termos do artigo 226, § 3º, da Constituição Federal.
Vejamos:
§ 1º. O casamento é civil e
gratuita a celebração.
§ 2º. O casamento religioso tem
efeito civil, nos termos da lei.
§ 3º. Para efeito da proteção do
Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade
familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
Uma vez que a Constituição Federal reconheceu a união estável como
entidade familiar, a Lei nº 9.278, de 10 de maio de 1996, ao regular o § 3º do
dispositivo constitucional acima transcrito, tratou de disciplinar o que é
entidade familiar, a qual se traduz na convivência duradoura, pública e
contínua de um homem e uma mulher, estabelecida com o objetivo de constituição
de família.
Contudo, resta inegável que a Lei nº 9.278/96 não estabeleceu o conceito
de convivência duradoura, de modo que não cabe ao intérprete fazê-lo.
Sob outro ângulo, o Código Civil traz o Título III – Da União Estável,
que dispõe, no seu artigo 1.723, que é reconhecida como entidade familiar a
união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública,
contínua e duradoura, e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
Ora, mais uma vez, o legislador não trouxe a definição de convivência
duradoura, mas fez questão de acrescentar que essa união deveria ser
estabelecida com o objetivo de constituição de família.
Contudo, a Presidente da República, aos 30 de dezembro de 2014, editou a
Medida Provisória nº 664, que altera alguns dispositivos da Lei nº 8.213, de 24
de julho de 1991 (a qual dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência
Social), inclusive no aspecto que diz respeito à pensão por morte. Referida
medida provisória estabeleceu o critério de dois anos de união estável ou
casamento para que o (a) companheiro (a) passasse a integrar o rol de
dependentes nos casos de morte natural, estando a morte por acidente excluída
dessa exigência.
2 Do critério temporal estabelecido na Medida
Provisória nº 664 de 2014
Parece-nos esdrúxulo o mencionado critério temporal para a concessão de
pensão por morte. Isso porque, com apenas um dia de casados ou em união estável,
o casal já tomou a decisão de estabelecer um vínculo afetivo que leva a uma
plena comunhão de vida, renunciando a várias outras coisas para ficarem juntos
e, inclusive, com efeito nos direitos sucessórios e meação (de acordo com o
regime de bens escolhido, e, no caso da união estável, a comunhão parcial de
bens), de modo que se torna ilógica a exigência do critério temporal de dois
anos para o direito de pensão do cônjuge sobrevivente no caso de morte natural.
Aliás, não é preciso haver uma doença preexistente ao casamento para que
a morte natural ocorra em menos de dois anos. Todos nós sabemos que existem
inúmeras enfermidades que levam a óbito em questão de dias ou meses.
Talvez a preocupação da Presidência da República tenha sido com aqueles
casos em que uma mulher jovem se casa, ou se une a um idoso à beira da morte
para receber sua pensão por morte após o falecimento. Considerando a
jovialidade da mulher, os cofres da Previdência Social teriam de pagar-lhe
benefício para o resto da vida. Contudo, parece-nos que houve uma visão míope
do problema, e que deixará à míngua milhares e milhares de mulheres e homens
viúvos.
É verdade que, atualmente, as mulheres passaram a integrar o mercado de
trabalho. E também é sabido que algumas ganham até mais que os homens, de modo
que muitas não precisam de pensão por morte para sobrevivência no caso de
falecimento do esposo. No caso dos homens, em geral acontece a mesma situação,
já que eles, na maioria das vezes, trabalham e são os responsáveis pelo
sustento do lar. No entanto, não podemos ter uma visão voltada para os
bem-sucedidos e deixar no esquecimento aqueles que estão desempregados por
ocasião do óbito, aqueles que não possuem uma profissão e dependem do cônjuge
para arcar com as despesas da casa, aqueles que reúnem os valores recebidos a
título de salário pelo casal e juntos pagam as despesas da casa, como aluguel,
luz, água, telefone e alimentação.
Desse modo, quando pensamos que a Previdência Social tem por princípio a
solidariedade social, notamos que a adoção do critério temporal de dois anos
para a concessão de pensão por morte cujo óbito decorreu naturalmente não se
coaduna com o pilar do Direito Social, que é a solidariedade social. Nesse
sentido, Noa Piatã Bassfeld Gnata (2014, p. 55) leciona:
A confluência entre os indivíduos e o todo permite a leitura da
solidariedade social com fim de realização democrática da sociedade e constitui
elemento fundamental de partida do Direito Social, em superação da lógica do
indivíduo e das afirmações teóricas de separação entre público e privado. A
solidariedade social passa a ser núcleo de irradiação constitucional de todo o
direito, pois o Direito Social é estrutura distinta da localizada superfície
dos direitos sociais trabalhistas e previdenciários.
Em outro aspecto, cumpre observar que a adoção de um critério temporal
mínimo de reconhecimento da união estável contraria a nossa legislação civil,
pois a Constituição Federal e o Código Civil disciplinaram a matéria de união
estável e estabeleceram a convivência duradoura, não fixando, em nenhum
momento, o lapso temporal mínimo de convívio para que se configurasse a
existência de uma união estável.
Estamos, portanto, diante de uma antinomia! Trata-se, in casu, de
antinomia de Direito Interno, já que o critério hierárquico entra em conflito
com o critério da especialidade, ambos previstos na Constituição Federal. É uma
antinomia real, a qual só pode ser resolvida com a aplicação dos artigos 4º e
5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) – Decreto-lei
nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 –, que dispõe:
Art. 4º. Quando a lei for omissa,
o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios
gerais de direito.
Art. 5º. Na aplicação da
lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do
bem comum.
Na verdade, a adoção desse critério temporal denota um verdadeiro
retrocesso, visto que, por vezes, levará a inúmeras injustiças, principalmente
no Direito Sucessório. Afinal, os ramos do Direito se integram, e, por isso,
certamente, haverá a adoção desse critério temporal em outros segmentos,
sobretudo pela jurisprudência. Isso fica mais evidente quando pensamos no
Direito Público Subjetivo, conforme ensina Rodrigo de Oliveira Kauffman (2011,
p. 149):
Essa insegurança de trabalhar em uma área incerta forçou os juristas a
transplantar rapidamente a lógica dedutiva e fechada do discurso antigo do
direito civil. As relações havidas entre direito privado e direito público,
entretanto, são mais íntimas do que usualmente se pensa. Conceitos fundamentais
do direito constitucional, por exemplo, nasceram de institutos tradicionais do
direito privado. Assim, “direitos fundamentais” é uma derivação, na teoria
moderna do direito público, do conceito de “direito público subjetivo” –
conceito criado por Jellinek em 1905, quando da publicação de seu sistema de
direito público subjetivo – que, por sua vez, advém da velha noção de “direito
subjetivo”.
3 Da constitucionalidade da Medida Provisória nº
664 de 2014
No que tange à constitucionalidade da medida provisória aqui em
discussão, cabe lembrar que esse instituto é regulado pelo artigo 62 da
Constituição Federal, em substituição ao antigo decreto-lei previsto nas
Constituições de 1937 e 1967, criado sob a influência do Direito Constitucional
italiano, que permite a sua adoção em caso de extraordinária necessidade e
urgência. Contudo, o sistema de governo italiano é o parlamentar, e, naquele
país, o governo, ao adotar uma medida provisória, lá conhecida como “provimento
provisório com força de lei”, o faz sob sua responsabilidade política. No caso
de uma medida provisória não ser aprovada pelo Parlamento italiano, o governo
cai, já que se trata de sua responsabilidade política.
No Brasil, a medida provisória é adotada pelo Presidente da República,
por meio de um ato pessoal e monocrático, e não prevê a responsabilidade
política desse ente, de modo que o Poder Legislativo só é chamado a discuti-la
em momento posterior, ou seja, quando a medida já produz efeitos jurídicos.
Vale lembrar as sábias palavras de Pedro Lenza (2014), que destaca que,
no Brasil, as medidas provisórias trazem insegurança jurídica e configuram uma
verdadeira “ditadura do Executivo”, governado por inescrupulosas “penadas”, em
situações muitas vezes pouco urgentes e nada relevantes.
É importante ressaltar que a medida provisória deve ser editada nos
casos de relevância e urgência, nos termos do artigo 62, caput, da Constituição
Federal. Trata-se de pressuposto constitucional cumulativo, contudo, no caso da
Medida Provisória nº 664 de 2014, tais requisitos não foram preenchidos
cumulativamente, afinal, todos os benefícios previdenciários existentes possuem
a respectiva fonte de custeio. Aliás, cumpre indagar: qual a urgência em tolher
direitos dos viúvos e viúvas? Por qual razão interferir em caráter de urgência
no Direito de Família, fixando o prazo de dois anos para o direito de pensão à
(o) companheira (o) sobrevivente?
Nas palavras de Gilles Lipovetsky (2004, p. 100),
“Ninguém negará que o mundo, do jeito que anda, provoca mais inquietação
do que otimismo desenfreado: alarga-se o mais abismo entre o Primeiro e o
Terceiro Mundo; aumentam as desigualdades sociais; as consciências ficam
obcecadas pela insegurança de várias naturezas; o mercado globalizado diminuiu
o poder que as democracias têm de regerem a si mesmas. Mas será que isso nos
autoriza a diagnosticar um processo de “rebarbarização” do mundo, no qual a
democracia não é mais que uma “pseudodemocracia” e um “espetáculo cerimonial”?
4 Conclusão
Diante do exposto neste breve estudo, não nos restam dúvidas de que
estamos diante de uma “pseudodemocracia”, que, sob a justificativa de manter os
pagamentos dos benefícios sociais em dia, se aproveita das falhas de nossa
legislação, utilizando-se de medidas provisórias para tolher direitos e
confundir os cidadãos, criando medidas que não são urgentes e muito menos
necessárias, e pior, gerando antinomias e trazendo mais insegurança jurídica, uma
vez que a solução ficará a critério do Judiciário.
Silvia Fernandes Chaves - Advogada
Silvia Fernandes Chaves - Advogada